Omakasê é o tradicional menu degustação japonês. Pedro de Artagão é o chef do Irajá, em Botafogo. Sem fazer muito alarde, foi com este nome nipônico que ele batizou o seu novo cardápio, lançado no fim de 2013. Longe de ser uma sequência de pratos japoneses, o jantar segue alguns princípios fundamentais dessas refeições, encontradas por todo o país asiático, de Tóquio a Osaka, de Kyoto a Nagoya.
Tudo começa com pratinhos que primam pela delicadeza, com base em pescados crus, até terminar com um único serviço de carne, em pedaço não muito grande, como acontece no país asiático. No Japão é parecido: o início seria ao sabor de sushis e sahimis, finalizando com uma única receita carnívora – que nas boas casas do ramo da terra do sol nascente, invariavelmente é o Kobe Beef, ou pelo menos um bom wagyu. Assim, o jantar, mesmo longo, termina leve, feliz, memorável.
O menu custa R$ 260 e as harmonizações de bebidas, R$ 130 ou R$ 180 (que foi a nossa).
Esse encontro entre o Japão e o Brasil é um dos melhores menus em cartaz na cidade hoje. Um desses programas que a gente fica até desconcertado, desvendando os mistérios e delícias apresentados em cada prato, rememorando os sabores dias depois, indicando aos amigos gourmets. Foi uma das grandes refeições que fiz recentemente, combinação de leveza, delicadeza, pureza e equilíbrio, numa sequência arrebatadora, deliciosa, e valorizada pelos vinhos bem escolhidos pela Julieta Carrizo, sommelière que gosta de fugir do trivial.
Ao longo do jantar, lembrei do bate papo recente que tive com a minha cozinheira predileta.
- O Pedro de Artagão é um chef incrível. Adoro o trabalho dele, sensível, inteligente – disse-me no final do ano passado a chef Roberta Sudbrack, quando a entrevistava para uma reportagem sobre o seu novo livro, lançando neste começo de 2014 (para ler,
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Para o jantar da semana passada, tudo começou nos últimos dias de dezembro, quando por conta de uma reportagem sobre a salada niçoise, publicada no Ela, eu estava trocando umas mensagens com o Pedro de Artagão, que numa delas me convidou para ir lá provar a novidade. Sabendo da nossa amizade e do nosso gosto comum pelos prazeres insanos da boa mesa, ele também chamou para a noitada o seu xará Pedro Mello e Souza, meu grande amigo, do site
Talheres, Cheguei. Resolvemos fazer a segunda edição de uma experiência bacana: jantamos juntos o mesmo menu, escrevemos textos separadamente, para que sejam colocados no ar no mesmo instante (a estreia foi no Térèze: para ler,
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- Sirvo sete ou oito desses menus desses por noite, no máximo, e nada mais. Faço questão de ir apresentar os pratos na mesa. Pode ser em mesas separadas, mas no máximo oito pessoas. Só podemos servir sob reserva, com três dias de antecedência, porque compramos muitos insumos só pra ele, e aí dependemos dos fornecedores – explica o chef.
Pois na noite de quarta, com o dilúvio se abatendo sobre a cidade, quase cancelamos. Mantivemos o programa, e fui o primeiro a chegar. Para esperar, uma caipira de maracujá com carambola e alecrim fresco,….
… servida com a irresistível travessa com chips crocantes de mandioca, com manteiga de garrafa e grana padano. Comi tudo, e não restou uma migalha qualquer.
Driblando as poças espalhadas pela Zona Sul e o trânsito que se instalou pós-temporal, os dois Pedros chegaram quase ao mesmo tempo.
Rufem os tambores. Toquem as trombetas. O show vai começar.
Grupos podem reservar a mesa colocada diante da cozinha, para facilitar a logística do serviço, e aproximar os comensais do chef e sua equipe. O jantar ganha ares de espetáculo, o vaivém na montagem dos pratos, os pedidos chegando através da voz dos garçons, que deixam as suas comandas e levam a comida pro salão.
Com o restaurante lotado mesmo com o dilúvio, nos sentamos no salão principal, nos fundos da casa.
O primeiro ato, servido no canto do prato, redondo e branco, era uma composição florida e alaranjada: os capuchinhos escondiam vieiras e gomos de tangerina. Levando o trio à boca, tínhamos a cremosidade, os tons marinhos e o leve dulçor das vieiras, o amargor agradável das flores de capuchino e a suculência da fruta, cítrica e docinha. O prazer da simplicidade.
A sommelière Julieta Carrizo contribuiu para o espetáculo, propondo uma harmonização de vinhos certeira, por vezes surpreendente. Para a primeira etapa, escolheu um espumante brasileiro, simples como o prato, sem grandes complexidades, mas leve, fresco e com acidez lá em cima, e borbulhas abundantes.
O segundo prato também carregava o espírito zen, a filosofia nipônica do minimalismo e da execução perfeita. A estrela era um lagostim quase cru, fresco e já cortado em pedacinhos (não dá para ver, porque a montagem reproduziu a carne como se estivesse íntegra, mas, já fatiada, tinha as porções exatas para levarmos à boca). Sobre ele, cubinhos de tomate bem maduro, folhinhas de coentro e um chá clarificado de tomate, bem condimentado, que teve efeito fundamental para tornar a receita ainda mais marcante, dando profundidade e persistência ao conjunto, bem picante e que contava ainda com uma farofinha crocante levemente adocicada, que dava um tapa no sabor e na textura.
Para reforçar esse caráter marinho e delicado do prato, nada melhor que um Chablis como este do Domaine de Vauroux, pura alegria mineral, salinidade e frescor.
Depois, um tijolinho de atum cru coroado por um naco de tutano, com brotinhos de beterraba, tiras finíssimas de rabanete, outra farofinha pra dar um crocantezinho e um molho tarê, denso e rico, agridoce.
- O tutano é o novo foie gras – bem observou o Pedro Mello e Souza.
Depois de três pratos com pescados crus, para começar, fica ainda mais clara a inspiração na cultura gastronômica japonesa.
- É um omakasê filosófico – diz o Pedro em uma de suas visitas à mesa.
Continuamos nos crus. Com tempero marcante de mostarda e gengibre, enrolado em folha de couve e colocado numa poça de jus de vôngole, o steak tartare cortado finamente chegou como um elemento de transição. O mar deixa de ser a estrela dos pratos seguintes. Terra começa a brilhar.
Assim, a próxima receita era uma burrata de enternecer, cremosa e fresca, salpicada de elementos terrestres: pedacinhos de quiabo defumado, chamuscado no fogo, brotinhos e azeite verde de manjericão. Foi um dos destaques, pelo sabor, equilíbrio e caráter surpreendente.
Para acompanhar, um Avondale rosé, sul-africano floral, com intensidade aromática, arredondando tudo, amaciando a receita, e surpreendendo este escriba, que escolheria um branco para o prato, sem sombra de dúvida. Gosto dessas subversões. Vivendo e aprendendo.
Merece um close.
Um cardápio desses, e ainda mais no Irajá, tem que ter uma receita reverenciando o ovo, esses ingrediente tão especial e versátil. No caso, era uma composição de enlouquecer. Na foto, Pedro Mello e Souza em ação, fotografando a finalização do prato.
Um ovo daqueles perfeitos, gema mole, clara macia. Pedacinhos de costelinha de porco crisp (pode imaginar o que é isso?). Caldo denso e encorpado do cozimento de costela. Folhinhas de coentro. Pimenta dedo-de-moça picadinha. Acho que nem preciso explicar mais detalhes do prato, certo? Parece-me que a descrição basta.
Se não bastar, mais uma foto há de ser o suficiente. A imagem mostra, ainda, a torradinha que acompanha, que podemos usar para furar o ovo, primeiramente, e depois para limpar o prato. O meu voltou limpíssimo para a cozinha.
Aí, como se fosse um clímax, um flashback, voltamos ao mar. Desta vez para saborear bochechas de cherne, com castanha-do-pará e um toque agridoce do abacaxi confitado. Um molho denso, untuoso e rico besuntava a carne do peixe, de sabor imenso.
Para acompanhar, mais uma pequena e deliciosa subversão, o tinto alentejano .beb, de Tiago Cabaço, leve, fresco e frutado, com espírito moderno, para ser servido mais frio que o habitual.
Em seguida, mais mar, mais surpresa.
- Esse é o mexilhão cozido no sangue – anunciou o chef – emendando antes mesmo que eu perguntasse – Abro o marisco na marra, antes de cozinhar. Aí, ele solta um líquido de sabor intenso, que chamamos de sangue. Abro na marra e cozinho os mariscos ali, com aquele líquido, para realçar o sabor – conta.
O prato era pura celebração das iguarias marinhas. O talharim caseiro, delicado, tinha tinta de lula. O mar branco que serve de base era um creme fresco de crustáceos. O pozinho também vinha do mar. Era o chamado “coral”.
- São ovas de camarão secas e transformadas em pó – explica o chef.
Da terra, só umas refrescantes e delicadas folhinhas de manjericão.
Se estamos no mar, que o vinho venha de uma ilha. E o eleito pela Julieta foi o espetacular Tenuti Dettori Renosu Bianco, produzido na Sardenha, um desses vinhaços, dourado, intenso, complexo, salino e mineral, com acidez eletrizante e muita concentração. Feito com longa maturação com as cascas, é praticamente um orange wine insular, marcante, e com preço bom (custa uns R$ 100, na Decanter, e vale cada centavinho).
Bravo!
Quando chegou um prato de carne, eu já sabia que o jantar estava terminando. Seria o último curso entre os salgados. Como acontece no Japão. Artagão servindo, Mello e Souza clicando. Penso: ô, sorte esse jantar.
Pois bem. Era um peito de boi, wagyu, claro, cozido por 40 horas, em baixa temperatura, perdendo muita gordura, amaciando e concentrando o sabor. Depois, a carne foi à grelha, fogo aberto, como se fosse churrasco, para dar um crocante e um toque defumado. Para finalizar, foi glaceada no molho de seu próprio cozimento. Com tanto poder, untuoso, de sabor carnudo e toda a concentração do preparo, a potência do caldo de cozimento, os tostados, era preciso um toque de frescor. Assim, uma saladinha cítrica, ácida, foi o contraponto que a costela precisava. O alto teor de gordura imediatamente nos remeteu aos cortes mais nobres do wagyu, dos bem marmorizados.
Brincadeirinha gostosa foi um pratinho entre o salgado e o doce que veio a seguir. Um bloco de tapioca crocante com uma geleia de frutas, compacta, feita com base em melancia e maracujá, quase um chutney.
Mais frutas, para encerrar, como geralmente acontece no Japão. No caso, era uma terrine gelada, quase sorbet, um bloco delicado, fresco e saboroso, feito com maracujá, morango, amora e framboesa, coberto de florezinhas, ao lado de um creminho.
Com tanta delicadeza, a Julieta sacou da cartola uma pinga de alta qualidade, a Fazenda Soledade Jequitibá, curtida nesta brasileiríssima madeira.
E assim, curtindo a potência da pinga e o frescor das frutas, encerramos um memorável jantar de gala. Impressionante, delicioso, marcante.
De lá, leves, felizes e inebriados, ainda fomos parar nas mesas do Delirium Café. Provamos cervejas especialíssimas, como esta magnífica Bourbon County, uma stout da pesada, amadurecida em barricas usadas na produção do tradicional destilado de milho dos Estados Unidos (a foto é do Instagram: @brunoagostinifoto). Uma doideira de cerveja. Mas isso é assunto pra outro post…
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